Comida pra Comer




Comida pra Comer.....

 


Há alguns meses fui apresentada a um restaurante mexicano em Tiradentes, a cidade que escolhi para viver, e tenho que confessar que fiquei  reticente,  pensando que seria mais um restaurante à comprar tacos de caixinha com um tempero pronto e servir tapas com tequila.  Puro “pré conceito” por ter conhecido a cozinha mexicana direto na fonte, por ter comido tacos feitos por mãos de índias habilidosas.
Na minha primeira visita tomei um drink, que estava perfeito, mas eu tinha acabado de jantar com amigos, em casa, e queríamos apenas beber algo e para ser sincera não dei muita atenção ao cardápio.
O tempo passou, conheci alguns restaurantes da cidade, me apaixonei por algumas propostas, questionei outras e surgiu novamente a oportunidade de visitar o Casazul. 
O restaurante me chamou a atenção por ter três bandeiras gigantes em sua porta e eu comecei a questionar por que nunca tinha prestado atenção naquelas bandeiras, uma branca e duas azuis.
Ao entrar naquela casa branca de janelas azuis, tive a impressão de nunca ter estado ali e ao mesmo tempo a sensação de já ter visto aquele ambiente antes.  Eu tinha razão......eu nunca tinha entrado ali.  O restaurante que eu conheci anteriormente era muito colorido, referenciava o México que é vendido fora do México.  E a impressão de nunca ter entrado naquela casa, é porque tinha acabado de passar por uma reforma, ou melhor uma reformulação.
O que eu entrava agora tinha as paredes e o piso completamente brancos e Frida Kahlo cruzava nossos olhares o tempo todo.  Pedi licença à artista e entrei, afinal eu estava entrando em sua casa.
 
Fui muito bem atendida pelas duas proprietárias e pedi que a cozinheira me alimentasse, porque a partir daquele momento eu estaria em suas mãos.  Só faço isso com lugares que me falam ao coração, porque ser alimentada por alguém e confiar no que vão me mandar, me remete a um tempo em que eu fechava os olhos e sentia o perfume dos temperos da minha mãe.
Chegou o primeiro prato e uma surpresa a cada mordida.  Os tacos eram perfeitos na sua textura e sabor e fui informada de que eram feitos na casa e abertos manualmente, sem o uso da prensa, como eu tinha visto há 20 anos, na minha viagem, ao México.
O guacamole, temperado com “pico gallo”, tinha os pedaços de abacate no tamanho correto e foi servido sobre pequenas tortillas de trigo.
Só estávamos lamentando porque em nossa mesa tinha 1 vegetariano e os meus elogios ao taco a faziam salivar.  Mais uma surpresa......a cozinheira proprietária, Rejane Cunha, nos informou que traria um taco especial feito com cogumelos e aspargos.....pronto,  o banquete estava só começando.
Estávamos em 6 pessoas na mesa e cada um queria pedir algo diferente do cardápio pois aquelas explosões de sabores aguçavam nossas papilas e gostaríamos de experimentar o cardápio inteiro nas horas que estávamos ali.
Não seria possível porque o cardápio é extenso,  com pratos surpreendentes e tivemos a certeza de que não era uma casa mexicana para comer tapas e tomar tequilas e sim um belíssimo restaurante, que valoriza e nos mostra a cozinha mexicana, ou melhor......a cozinha da Frida Kahlo, que por acaso é uma grande representante dessa cozinha.
Fizemos nossas escolhas e mais uma vez meu “pré conceito” falou mais alto.  Uma amiga pediu a “Enchilada”, que segundo descreveu a cozinheira tratava-se de uma tortilla recheada com arroz, frango e açafrão.  Torci o nariz para aquele prato; como assim, que loucura era essa de rechear um tortilla com arroz.  Eu conhecia o prato e sabia que cada coisa era servida separadamente e aquela mulher ousada estava misturando tudo......
Enfim, os pedidos chegaram e eu tive que provar todos......a cada mordida eu era seduzida por aqueles sabores, que as vezes me pareciam familiares e as vezes me faziam parar com a comida no garfo e fechar os olhos para ver onde eu estava, em que lugar da minha memória aqueles sabores estavam trancafiados.
Os “Ovos Rancheros” me transportaram para um café da manhã em um hotel de viajantes no centro da Cidade do México. Os ovos com a gema mole vinham sobre as tortillas de Milho, feitas na casa, cobertos por um espesso molho de tomate  na picancia correta.
Fiquei intrigada com aquela cozinha, com aquela cozinheira, que me tirava do lugar comum mas não me dava respostas.  Eu, que preciso explicar tudo, estava sem explicação.  Aquela “tortilla recheada com arroz” me fazia repensar meu papel na cozinha e principalmente no que estava se transformando a tal da “alta gastronomia” que hoje manda verdadeiras obras de arte para as mesas e junto, algumas vezes, tem que ir um manual de instruções, de como comer, para que o comensal não destrua a idéia do chefe.
O cliente recebe um prato com um filé no centro,  que deverá ser cortado e molhado no líquido que está no copinho do lado direito e depois mastigado junto com o purê que encontra-se na colher chinesa, do lado esquerdo......ah, comer não é mais tão simples, pois se comermos o filé sem banha-lo no molho ele não terá sabor e se comermos o molho puro ele será outra coisa, e o purê passa a ser coadjuvante onde deveria ser o ator principal, na criação do chefe.
Essa é uma questão que me acompanha há alguns meses, a cada momento em que crio um prato novo e faz parte das minhas conversas com amigos cozinheiros, pesquisadores, gourmets e curiosos.
Eu quero fazer comida de verdade e quero comer comida de verdade.
Hoje eu entendi o que esse restaurante me causa, é uma experiência que eleva a alma, uma experiência que vivenciamos na meditação e no orgasmo.
Hoje comi um Filé ao Mole Poblano.  Primeira ousadia.....a troca da ave pelo boi, e o mole é o mesmo que Diego Rivera amava e que Frida Kahlo foi aprender fazer, com sua ex mulher, para que aquele homem tivesse a certeza de que era dela e com quem tinha se casado.
Para acompanhar o prato, um hambúrguer de batatas com arroz, coentro e queijo.....ahhhhhh....entendi o recado que essa cozinheira passa, entendi a mensagem desse restaurante....entendi que comida de verdade só pouquíssimos chefes ainda sabem fazer.
Essa cozinheira nos alimenta com os sabores primários, ela nos faz levar à boca exatamente o prato do jeito que foi pensado, do jeito que foi criado, sem manual de instruções.  Não precisa explicar que o pesto de coentro dever ser misturado com a batata e comido com o arroz......ela coloca tudo junto,  ela nos economiza, ela nos protege do erro dos sabores, ela nos abre a porta das sensações e quando aquele hambúrguer mistura-se com o mole e o filé....chegamos ao paraíso.
E aí me perguntam.....”Por que você acredita em Deus”  e eu respondo.....”Porque ele fala através de alguns cozinheiros que nos alimentam com todo o seu amor”