As Gavetas da Memória.......

.....o que guardamos nessas gavetas? Emoções, passado, histórias, pessoas, ingredientes, viagens, sabores, cores, perfumes, texturas....... Hoje acordei pensando o que me levou a ter essa paixão pela cozinha e essa pergunta me fez procurar o velho bilhete de trem, com data de embarque mas sem data de retorno.
Junto com o bilhete tinha um álbum de fotos, já desbotadas pelo tempo. Algumas insistiam em conservar suas cores, mas mostravam que a saia tinha encurtado porque eu havia crescido. Virando as páginas eu pude sentir um perfume de canela e me lembrei daquele pedaço de pau, o dia em que foi guardado ali e sua história......ele fazia parte de uma foto de “cordeiro cozido no iogurte”, era um dos ingredientes e foi preparado por um amigo, muito querido, chegado de férias e que dividiu conosco suas aventuras de viagem. Na página seguinte, uma folha de caderno dobrada e que trazia rugas que marcavam algumas palavras e as tornava ilegíveis. Sabor do tempo, porque era uma receita de “Pão de Abóbora” com sementes e cascas. Voltei aos meus 22 anos, para uma cidade que cheirava a lenha queimada, que tinha casas simples e gente que olhava nos olhos. Comi aquele pão, com a manteiga de leite, como eles chamavam, que tinha sido feita da nata recolhida por dias, e depois batida no liquidificador e banhada por água gelada para dar o ponto. Pude sentir o gosto e o cheiro do café fresco escorrendo pelo coador de pano e a alegria dos novos amigos. Pude sentir uma gota quente escorrendo pelo canto dos olhos e decidi que à tarde seria dedicada àquela viagem de trem.......a página seguinte trazia homens de avental de açogueiro, imaculadamente brancos, mas com as mãos já sujas pelo sangue dos animais sacrificados para aquela festa. Festa de roça, na qual as mulheres faziam as quitandas e os homens cuidavam dos bichos.....os leitões, frangos, coelhos.....que seriam leiloados nas noites seguintes, para que as pessoas comessem com as próprias mãos, ali mesmo naquele galpão construído de lona, para a ocasião. Ou levassem para suas casas e o dividissem com quem não tinha podido participar da festa. No meio de tantas lembranças, de tanta foto de comida, de tantos ingredientes, de tantos amigos, eu achei uma foto muuuiiiiito antiga, de um tempo em que cozinhar significava apenas receber amigos, abrir um vinho, preparar o que tinha na geladeira e comemorar algo, que inventávamos na hora, pois sempre tínhamos o que comemorar.....o namorado novo, a viagem, a entrada na faculdade, a desistência da faculdade, o amigo que ia partir, a amiga que estava voltando........ E aquelas fotos me fizeram voltar num tempo.....essa é mesmo a função das fotos, iluminar um caminho que deixamos para trás, mas que é presente quando tocado. Fechei o álbum e comecei a buscar os cadernos de receitas, antigos, que eu tenho na biblioteca......que viagem mágica.....livros que trazem receitas de “pudim de claras”, junto com receitas para deixar os lençóis mais brancos......”galinhada com gengibre e alfavaca”, junto com receitas para extrair verrugas......”bolo da Maria Cota”....quem será que foi Maria Cota e porque a receita do bolo estava em destaque?, junto com receita para “segurar o namorado na noite de santo antonio........ Foi uma tarde que me dei de presente, que senti perfumes, sabores, que ouvi conversas que não me lembrava mais, que ouvi vozes que já não ouço à tempos, que senti o carinho das minhas tias, que moravam na fazenda, e nos recebiam com as latas cheias de biscoitos e carnes cobertas por gordura, ouvi o barulho da corda do poço sendo enrolada na manivela e trazendo a água mais gelada e saborosa que eu já bebi, que servia para lavar a cara daquela criançada, suja de manga madura, e para lhes tirar a sede. Um passeio pelo pomar, com um canivete nas mãos, para descascar as laranjas, colher frutos, cortar verduras sem ter que arrancar as raízes.....um passeio pelas cercas de arame farpado para “roubar” abóboras no sítio do vizinho porque elas tinham cores mais vivas.......mergulhar no rio e tentar pegar lambaris com as mãos....... Abri novamente o álbum e ele trazia meus irmãos de calças curtas, pés descalços, uma bacia com frutas, que eu não soube identificar, e uma alegria de criança que ficará guardada pra sempre na gaveta da memória.

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