Um jantar mágico....no escuro

pão folha com maçã verde e vermelha crua, com maçã vermelha e maçã verde (sem casca) aromatizadas com azeite e sal com ervas, maçã salteada no azeite trufado
purê de batatas com pequi e lâminas de cajamanga servido com chantily de pequi
tartar de melancia com redução de shoyo com gengibre e açúcar com cardamomo e alga nori
caroço de jaca cozido em molho de moqueca
moqueca de jaca verde acompanhada de arroz branco
doce de jiló em calda de açúcar com canela e requeijão cremoso
chá branco adoçado com açúcar com cardamomo
Essa foi a degustação que preparei para uma oficina em Belo Horizonte, para o grupo de teatro de bonecos "Catibrum". Foi daquelas experiências que a gente sai e não sabe se foi atropelado por um anjo ou por uma carreta. Em meados de fevereiro recebi um convite/desafio do diretor do grupo, o querido amigo, Lelo Silva, para que eu fizesse uma oficina para a montagem do novo espetáculo, que vai estrear no segundo semestre. Ele me mandou o texto, o livro em que o espetáculo está baseado, escaneado, e um desafio.....preparar uma degustação para participantes de olhos vendados, porque é a estória de uma menina que fica cega aos 15 anos. Como sou movida por novos projetos eu topei na hora e junto com a menina eu comecei minha viagem. Ela no vagão de um trem de metro e eu no vagão da memória. Fizemos nossas malas e partimos juntas para a aventura. A cada mergulho da garota em suas fantasias eu mergulhava nas minhas. Fiquei pensando nos cheiros, gostos, cores, luzes, escuridão.......uma viagem que eu não imaginava que depois que se embarca não se volta o mesmo que partiu. Enfim chegou o dia da partida e a estrada percorrida já não era a mesma pela qual eu tinha passado nas últimas viagens. Sai de Gonçalves na segunda feira, a tempo de almoçar na "venda do Chico" e poder comer o melhor frango ao molho pardo que já provei. Cheguei em BH no começo da noite e fui recebida com todo o carinho por uma amiga muuuuiiiito querida. Jantar, vinho, conversas, risadas, boa companhia e a vontade de continuar a noite inteira colocando a conversa em dia, não fosse o dia seguinte querendo se apresentar e nos fazer ir para o mundo real. No dia seguinte foi a hora de tomar café na casa de outra amiga, também muito especial, e não é à toa que é irmã da primeira. Café com ela, o marido e a mascotinha do casal nos rodeando, querendo ouvir as novidades dos "lados de cá". Depois de todo esse carinho recebido, planos antigos sendo tirados das gaveta e foi a hora de partir para meu programa predileto naquela cidade.....visita ao mercado central. Ao descer as escadas do estacionamento o meu cardápio preparado há um mês ficou no fundo da memória e nasceu um outro. Ali encontravam-se cajamangas, jacas verdes e maduras, melancias extremamente doces, jilós fresquíssimos, pequis....... e ao fechar os olhos eu senti os perfumes e as texturas que procurei para comer no escuro. Sabores da infância misturados com sabores já amadurecidos e ainda com sabores somente ouvidos mas nunca experimentados, como o marolo ou araticum ou cabeça de nego, ao qual fui apresentada pela primeira vez. Um fruto com aparência de uma fruta do conde gigante, o amarelo da jaca madura e um sabor que é só dele. Sai do mercado com a jaca bem verde no porta malas do carro, alguns ingredientes para o dia seguinte e o endereço da próxima parada, que ficava do outro lado da cidade, o galpão do Catibrum. Quando cheguei fui transportada a uma parte da minha história que há muito passou. Um tempo em que eu fiz teatro e que o cheiro da resina misturava-se com o cheiro das emoções provocadas por textos, ensaios de até 12 horas aos finais de semana, cola sendo misturada com papeis, figurinos sendo costurados.....um tempo em que eu só cozinhava para amigos. Conheci o palco em que eu iria atuar no dia seguinte e o cenário que estava sendo preparado para embarcar para o Rio de Janeiro, onde o grupo iria se apresentar no final de semana. Mais uma noite de afeto e o dia chegou logo me fazendo pular da cama e ir à compras. Compras feitas e a ansiedade por cozinhar começou a apressar. Cheguei com o pessoal a todo vapor para finalizar as últimas coisas que deveriam ser embarcadas. Montei o meu cenário, na pequena cozinha e os cheiros começaram a se misturar. Azeite dourando as cebolas.....óleo da máquina de costura aquecendo de tanto usar aquele motor..... O som da faca em contato com a tábua cortando a jaca e o som do clube da esquina nas caixas.... O cheiro da comida no ar misturando-se com o cheiro resina do outro...... O trem tinha partido e agora só dava pra descer nas próximas estações. A tarde chegou, o caminhão partiu para o Rio, os convidados começaram a entrar e a serem vendados, a noite foi caindo e abriram-se as cortinas. 8 pessoas prontas para a viagem, malas nos bagageiros, coração na boca, e a boca pronta para receber o que lhes seria ofertado. 7 vendadas, inclusive o Flávio, que começou a perder a visão aos 15 anos e hoje não enxerga nada, e uma sem a venda e que em alguns momentos teve as mesmas dúvidas sobre o que estava comendo. Exigiu coragem, desapego e confiança. Ser alimentado sem saber o que estava sendo servido, confundindo os sabores, aguçando os sentidos, mergulhando fundo em um mar que é o das emoções. A cada prato servido discutíamos o que era e pude perceber o quanto estamos presos a padrões, a idéias pré concebidas, o quanto estamos resistentes ao novo, ao desconhecido. Pessoas que se estivessem vendo teriam resistido a comer doce de jiló, mesmo sem saber o seu sabor, apenas por "achar" que não gostam de jiló e ainda mais doce.....Pessoas resgatando sabores de infância e depois de ouvir o companheiro do lado dizendo que o sabor era outro mudar de idéia, com fazemos tantas vezes na vida, quando não somos firmes com o que acreditamos ser a nossa verdade. Foi mágico, foi especial, foi uma experiencia para guardar para sempre e que tenho certeza de que levou cada um dos participantes para a estação seguinte e com o desejo de repensar o que colocar na mala na próxima viagem, porque as roupas velhas já não cabem mais.

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